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A voz vem antes da fé

Eu estava prestes a pegar o voo até São Paulo.

Enquanto meu pai procurava a cadeira de rodas e minha mãe buscava o carrinho para as bagagens, tive que ficar sozinho dentro do carro com as portas fechadas. Sozinho por um tempo curto, mas o suficiente para perceber que eu não estava realmente só naquele momento. Eu ouvi uma voz. A voz mais serena e tranquilizadora que já escutei em toda minha vida. Perguntei: quem é? Fale, fale… Quem é que está aí? Me diga. Aquela voz disse apenas meu nome, mas me trouxe uma paz imensurável. Até me questionei depois – Será um distúrbio de esquizofrenia? Prefiro acreditar na existência de um plano espiritual.

Depois de ter passado por inúmeras sessões de quimioterapia, há 7 anos eu fiz um transplante de medula autólogo. Para quem não sabe é aquele em que você retira uma quantidade razoável de células tronco, congela e envia para a “Escola de Artes e Bruxaria do Harry Potter”. Depois descongela no banho maria e solta toda aquela magia direto na veia cava do coração. Se compararmos com o sistema reprodutor, as minhas células tronco seriam os espermatozoides e a parte interna dos ossos, o óvulo. No meu caso este processo foi quase tântrico, pois as milhões de células tronco demoraram 10 dias passeando pelo sangue até achar o seu verdadeiro habitat. Neste dia o meu corpo se sentiu a própria múmia de Tutancamon acordando na Tumba.

Tenho 99,9% de certeza que você já ouviu a famosa pérola “A fé move montanhas”. Já não tenho, no entanto, tanta certeza se você ouviu os trechos “Se Deus é pai é a voz, minha mãe… que me fez entender quem eu sou” e “Deusa mãe é a voz, sua paz cura a dor”. Sempre gostei de ouvir algumas canções na voz de Gal Costa. No ano passado ela lançou seu novo álbum e em uma das letras essas frases me chamaram atenção. A voz, assim como a música é sinestésica e eu sou prova viva de que uma única voz é capaz de curar milhares de dores.

A voz é capaz de trazer lembranças, sentimentos, cores e cheiros, e ela também pode passar por você à francesa, como um sussurro ou uma intuição. Seja de dentro para fora ou de fora para dentro, uma voz é capaz de fazer você desistir ou resistir. Parafraseando Caetano Veloso, a voz pode ser bússola, como também pode ser nossa desorientação.

Na época do meu tratamento, assim como nos dias de hoje, eu fazia parte de um grupo de risco e precisava ficar isolado. A música foi uma das coisas que mais me manteve forte e positivo naquele ano, mas também o conteúdo, as letras daquelas melodias e a voz dos intérpretes me traziam o bem-estar que eu necessitava e, como na música cantada por Gal Costa, toda aquela verborragia tirava minhas dores. Eu costumava chamar aquelas doses musicais diárias de “Quimiorerapia Digital”.

Nas aulas de Teoria de comunicação a gente aprende que para haver comunicação é preciso no mínimo de um emissor “A” e um receptor “B”. Apesar de eu ser uma pessoa com um comportamento verbal excessivo, sempre gostei de ouvir, e dentro de um quarto de isolamento com uma imunidade baixa, era preferível que eu não gastasse tanto minhas energias sendo do lado A. Então naquele ano eu aproveitei o silêncio das minhas cordas vocais para ser mais do lado B.

Desde aquele dia dentro do carro, no final do ano anterior, eu nunca mais tive esperança, e sim a certeza de que aquele turbilhão de emoções iria passar e toda aquela experiência transcendental era só mais um aprendizado. Aquela voz me ensinou a criar uma política de boa convivência, não apenas com o “Alien”, que passou uma temporada na minha barriga, mas também com todos os desafios que estavam por vir pelo resto da minha vida. Aquela voz me deu fé e a segurança que eu precisava para encarar mais este desafio, de escrever com toda certeza que hoje existe um lado B ouvindo a minha voz.

Recifense radicado em São Paulo, Lucas Uellendahl é publicitário, roteirista, compositor e produtor audiovisual. Atualmente comanda o time da Kalangus Creative Hub.

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